Desencanto de Natal
Nasceram crenças.
Edificaram-se religiões, qual delas a mais verdadeira.
Panaceias para a solução dos problemas e insuficiências do Homem.
Do belicismo conceptual ou pragmático a que se devotaram, foram germinando a partir das sementes do medo ou da ignorância, em coexistência pacífica com laivos de idolatria e superstição.
Os profetas anteciparam o surgimento de messias, presenças sagradas no seio do mais profano caos. À descontinuidade do espaço juntara-se a descontinuidade do tempo.
A boa-nova propaga-se e incendeia esperanças: - Vai nascer o salvador da Humanidade.
Nasceu. Nasceram. Criados à imagem e semelhança do Homem situado na sua conjuntura, reforço endogâmico propiciador de ferozes xenofobias.
Em nome da verdade, sempre em nome da verdade.
Aos ídolos e deuses antropomórficos sucederam seres perfeitos e inatingíveis, omnipresentes e omniscientes.
Nem por isso a convivência se tornou mais pacífica
Fizeram-se guerras, continua e continuará a combater-se: Caim não desiste de matar Abel.
Escolhamos um pedaço roto deste planeta degradado. Além de se matarem uns aos outros, seres insensatos também querem destruir a sua aldeia, a sua morada. Como se não bastasse a fúria dos elementos naturais.
Da terra destroçada erguem-se gritos de dor, espreitam despojos humanos por entre lama sangrenta. Através do calor fumegante, assistimos ao desfile dos mortos e estropiados, mãos sem mãos que apontam para nada, ossos rubros de fantasmas em lenta procissão nas sombras da madrugada.
Com eles se cruzam os predadores, dentes de aço cerrados em sulfurosa excitação. Vão à caça dos irmãos que até agora conseguiram inexplicavelmente sobreviver.
Deixaram, para trás ou pelo caminho, crianças amputadas de inocência sem se esquecerem de lhes encher de fome as barrigas opadas, sem lhes mitigar a sede ou afugentar os insectos repelentes que nelas se saciam.
Mais além, apregoarão que tudo se fez pela paz, pela liberdade. E vitoriarão a santidade dos salvadores que os inspiraram contra a rebelião dos que apenas acreditavam noutras verdades.
Coitados dos desvalidos da fortuna que bebem na poesia néctares de amor por vizinhos e inimigos. Sabem que a paz é humana e não erguem tal bandeira sobre divinos devaneios. Sofrem certamente mais que os outros.
Mas salvadores de todas as crenças e religiões renascem ano após ano pela voz de acólitos inflexíveis a recordar dogmas que só a fé pode explicar e a renovar a sua voracidade ou estranhos convites ao sacrifício penitente.
Onde moram afinal a Alegria e a Solidariedade?
E onde pára esse tão apregoado espírito de Natal?
Em anos anteriores também nada aconteceu de novo.
Tantos salvadores e tão pouca Humanidade!
joaquim evónio
Dez 1999
(In “Sercial & Malvasia”, Joaquim Evónio, Ed. Temas Originais Lda., Coimbra, 2009)